sábado, 20 de junho de 2015

Cristo hoje é uma travesti, pregada numa cruz e um negrinho pelado, algemado num poste

As imagens chocam, e muito, aqueles que foram educados pelo e para o ódio – ironicamente, através da religião que se distinguiu, ao longo dos séculos, por um profeta que pregava o amor.
Tive aulas de catecismo que me ensinaram sobre a figura de Jesus na cruz como a representação de sua luta pelos perseguidos da época. “Por isso ele é o salvador da humanidade”, dizia a professora.
Jesus Cristo foi crucificado porque defendeu os trabalhadores explorados, os miseráveis, as prostitutas, os leprosos e até mesmo os que não acreditavam em sua palavra.
Tudo isso está nas escrituras. Pode ser somente uma metáfora. Não sou um religioso, tampouco ateu – tenho uma maneira estranha de acreditar, por exemplo, no Cristo histórico e outras coisas que fazem sentido pra mim –, mas sempre vi sua história como algo muito presente no mundo ao meu redor, e por isso acho o cristianismo uma ideia com muito sentido.
Acredite nele ou não, a história de Jesus é a da vítima do ódio mais conhecida pela humanidade.
Também aprendi de pequeno que os cristãos creem no retorno de Cristo ao mundo dos mortais. Lá pelos Anos 90, se dizia que isso aconteceria dois mil anos depois da sua morte.
Onde estaria hoje esse Cristo que renasceu? Levando em conta o ensinado nas aulas de catecismo, Cristo seria uma transexual pregada numa cruz na parada gay, simbolizando as travestis que são espancadas, humilhadas e assassinadas com requintes de crueldade no Brasil e em vários outros lugares assolados pelo fanatismo religioso. No caso brasileiro, pasmem, pelo fanatismo cristão.
Talvez Cristo tenha renascido milhões de vezes no mundo atual, para ser novamente crucificado. Ele foi um homem atropelado por um caminhoneiro em Goiás, porque um cristão homofóbico não gostou de vê-lo abraçado a outro homem. Foi um mendigo humilhado na rua com um balde d´água, e um frentista haitiano acossado por cristãos. Ele foi aquela menina do Piauí morta após um estupro coletivo, pelos cristãos que a crucificaram. Foi aquele negrinho que batia carteiras, ou furtava galinhas, e terminou nu e algemado ao um poste – as imagens de sua crucificação são conhecidas, não foram encenadas, mas sim comemoradas por uma jornalista cristã e seus seguidores também fiéis.
O Cristo crucificado hoje é uma travesti, um homossexual, um palestino, um imigrante africano ou haitiano, um negro das favelas brasileiras, um índio da Amazônia, ou da Bolívia, ou um mapuche, um nordestino, um menino de rua, uma mulher que sonha em chegar em casa logo, antes que algo aconteça – ou em ter pra onde sair de casa logo, antes que algo aconteça.
As imagens de Cristo como uma travesti pregada na cruz choca parte da comunidade cristã brasileira, tanto quanto os primeiros cristãos que pregavam o amor ao próximo como princípio fundamental de difusão de sua crença chocavam os romanos. Talvez porque entenderam isso, alguns evangélicos participaram desta última parada gay defendendo o lema “Jesus cura a homofobia”.
A tal da blasfêmia, reclamada por alguns pastores oportunistas, certamente não levará nenhum homossexual a atacar evangélicos física ou psicologicamente, muitas vezes com resultado de morte. O contrário, o uso da pregação bíblica para justificar a perseguição e assassinato de homossexuais e transgêneros, por ódio puro e simples, é coisa frequente em nosso país.
Penso naquela pobre professora de catecismo, sem ter como saber se ela aderiu aos novos tempos em que os cristãos são os que odeiam os demais, ou se continua ensinando o mesmo que ensinou a mim. Na segunda hipótese, temo que ela possa ter sido linchada por outros cristãos, acusada de comunista, gayzista e até mesmo ateia.
Nesse momento, sinto que o juiz que condenou Cristo foi o grande vencedor da História.
Eis o homem.


Texto: Victor Farinelli (Publicado originalmente em sua conta do Facebook)
Nota do CEBI: O fato que motivou o texto aqui apresentado foi a encenação da crucificação apresentada pela transexual Vivyane Beleboni por ocasião da Parada do Orgulho Gay de São Paulo. 

Pecado à brasileira (ou Jesus Cristo e a Parada Gay)

     "Não existe pecado do lado de baixo do Equador. Vamos fazer um pecado, rasgado, suado, a todo vapor. Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho, um riacho de amor. Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo, que eu sou professor! Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá. Vê se me usa, me abusa, lambuza, que a tua cafuza, não pode esperar”.
Os versos acima são da música "Não existe pecado ao sul do Equador”, composta para integrar o repertório da peça "Calabar, o elogio da traição”, escrita em 1973 por Chico Buarque e Ruy Guerra. A obra, marcada pelas metáforas, parte de uma figura histórica (Domingos Calabar) para fazer uma crítica à situação que o Brasil vivia na época; foi um desacato sutil à ditadura que definia os comunistas como traidores da pátria; impondo uma brutal repressão política e moral ao país. Anos depois, a música ganhou ainda mais notoriedade na voz de Ney Matogrosso, o mesmo que, em 1977, ainda sob a ditadura, lançou um disco chamado "Pecado".
viasdefato

Lembrei esses artistas e músicas (ousados para a época) ao ver a polêmica e a repercussão em torno da atitude da transexual Viviany Beleboni, que apareceu caracterizada de Jesus Cristo na recente Parada Gay de São Paulo, realizada no dia 7 de junho. Seu gesto foi visto por alguns, incluindo "nobres” deputados de Brasília, como blasfêmia, desrespeito, deboche, heresia. Houve xingamento, ameaça e críticas, oriundas até de alguns integrantes do movimento LGBT, temerosos com a repercussão. Para os conservadores de hoje, ela virou uma emblemática Geni.Seminua, cheia de "hematomas” e "sangrando”, Viviany desfilou, em cima de um carro aberto, pregada a uma cruz, com uma coroa de espinhos na cabeça e no alto da cruz uma placa dizendo "basta de homofobia”. Ela deu a cara à tapa e trouxe novamente a tona uma discussão sobre graves problemas decorrentes do preconceito aos homoafetivos no Brasil, incluindo os inúmeros assassinatos de travestis, lembrando que o nosso país é o campeão mundial neste tipo de crime.
Então, rapaziada, sem essa de pecado ou blasfêmia. Não estamos sob a inquisição. Ela não desrespeitou nada, nem ninguém! Ela afrontou apenas os sexistas. A atitude de Viviany merece nosso aplauso e solidariedade. Historicamente, a cruz é lugar dos humilhados, agredidos, torturados (e Cristo não foi um norte-americano loiro dos olhos azuis). Desrespeito não seria a mercantilização da fé? Desrespeitosos não seriam os vendilhões do templo?
A coragem da transexual politizou o evento LGBT e estimulou o debate. Apesar das esperadas reações contrárias, ela provocou a reflexão sobre os nossos mais arraigados preconceitos e hipocrisias, com muitos progressistas saindo em sua defesa, frente aos apedrejadores. Segundo ela, "Parada Gay não é Carnaval fora de época, é protesto”.
Uma das questões levantadas é: qual o problema de Jesus Cristo ser retratado como um transexual ou travesti? Ele - o Cristo - seria pior se fosse gay? Não. É lógico que não. Nós sabemos que ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua orientação sexual.
Esta polêmica gira em torno do cristianismo e suas diferentes visões. Passa pelo moralismo fossilizado de alguns e pela luta de outros por respeito. Vivemos em um estado teoricamente laico, onde se deve respeitar a liberdade de culto (Pajelança, Candomblé, Umbanda, Espiritismo, Catolicismo, Protestantismo, Santo Daime etc.) e garantir direitos coletivos e individuais. A homofobia (assim como outras opressões sociais) precisa ser combatida e não pode ser estimulada por ninguém. Para o conjunto da sociedade, a interpretação de nenhum dos diferentes livros tidos como sagrados, pode se sobrepor às normas de uma sociedade que se propõe democrática e civilizada.
Nesta questão, que passa por nossa cultura religiosa, quem se posiciona muito bem são os adeptos da Teologia da Libertação, com sua crítica social profunda (incluindo os abusos do clero), sua visão solidária e ecumênica, sua "fome de pão” e "sede de justiça”, seu compromisso sincero com os pobres e uma crença que não é autoritária, nem impositiva. Falo da turma de Dorothy, Josimo e Helder.
Devo confessar aqui minha má vontade com os estridentes e avarentos líderes religiosos de terno e gravata, além dos que carregam pesados crucifixos de ouro sobre suas batinas. Lembro o memorável diretor de teatro Augusto Boal, no livro "A Estética do Oprimido", ao falar do papa (ainda não era o interessante e arejado argentino Jorge Bergoglio), quando ele disse que "Jesus e o atual cristianismo têm pouca coisa em comum. Para que eu possa começar a acreditar em alguma coisa que ele diga, quero ver o papa quase nu, despojado de artifícios, pregando nas ruas e nos campos. Isso, sua estética não permite, a minha, exige!”.
É repugnante ver aqueles que, em nome de Jesus Cristo, usam as redes sociais para atacar uma transexual "crucificada” e são absolutamente indiferentes ao assassinato de travestis. E são indiferentes também às palafitas, mendigos, despejos e crianças que vivem em situação de rua. São os mesmos que, desprovidos de qualquer misericórdia, aceitam (tranquilamente!) a imensa desigualdade social brasileira, fecham os olhos para a quase falência da educação básica nas escolas públicas e ainda querem reduzir a maioridade penal para jogar adolescentes (pobres!) nos infernos das penitenciárias brasileiras, outro problema negligenciado.
A polêmica em torno de Viviany nos remete a diversos grupos sociais vítimas da hostilidade e da humilhação e que (graças a Deus!) estão exigindo a justa dignidade. Sobre o assunto, ao ver a transexual "crucificada”, deveríamos lembrar uma mensagem que orienta a "amar ao próximo como a si mesmo”. Ela serviria para que entendêssemos este protesto feito na Parada Gay e enxergássemos de forma generosa a todos os excluídos que nos pedem socorro.
*Emilio Azevedo é jornalista e integra o grupo do jornal Vias de Fato.

Emilio Azevedo

Jornalista com pós-graduação e