Fé e política em tempo de crise

ENES PAULO CRESPO
Reginaldo Veloso
“Foi então a Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, no dia de sábado, foi à sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, encontrou o lugar onde está escrito: O Espirito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça da parte do Senhor”. Depois, fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Os olhos de todos, na sinagoga, estavam fixos nele. Então, começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 4,16-21).
Ontem(15/03), estive na Morada da Paz, município do Paulista, para despedir-me do grande companheiro e amigo, Enes Paulo Crespo, presbítero da Arquidiocese de Olinda Recife. Como não apareceu nenhum ministro competente, de alguma paróquia ou da arquidiocese, para fazer a celebração de despedida, popularmente chamada de “encomendação”, eu me dispus a animá-la, e Fernanda, a fiel esposa do que partia, ladeada por seus nove filhos e filhas, prontamente aceitou.
No momento da leitura, pedi ao Rochinha, também presbítero casado, amigo da família, que proclamasse o texto que, acima, serviu de epígrafe ao presente escrito. Refleti, em seguida, com as pessoas presentes, sobre a vida e a militância de Paulo Crespo, como alguém que, à semelhança de Jesus e no seu fiel seguimento, realizou, também, de maneira significativa essa passagem da Escritura, deixando-nos a todos e todas, como herança, o legado do seu testemunho.
Passo, então, a citar o que no site da OCB-PE (Organização das Cooperativas do Estado de Pernambuco), lê-se hoje, em sua homenagem:
<<Enes Paulo Crespo foi um dos precursores do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, movimento concebido dentro da legalidade vigente no Brasil, no governo do Presidente João Goulart. Crespo teve amplo apoio do Ministro Franco Montoro, bem como de tantos outros que buscavam uma solução política para as mazelas nacionais.
O Sindicato era o braço político dos trabalhadores, enquanto as cooperativas o braço econômico, de forma que a autonomia político-econômica, juntamente com a formação de uma consciência crítica e filosófica católica, tornaria os trabalhadores rurais inseridos em uma sociedade igualitária, em sua luta por uma melhor situação.
Pela Arquidiocese de Olinda e Recife, o Pe. Paulo Crespo levava a capacitação técnica aos trabalhadores rurais através do Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (SORPE), o qual juntamente com as ligas camponesas, foram os precursores do Sindicalismo Rural no Estado, nessa época como então secretário executivo da CNBB. O movimento sindicalista fora coordenado pelo SORPE e com o incentivo de Dom Hélder Câmara, enquanto as ligas camponesas com Pe. Melo e Francisco Julião.
Em janeiro de 1971 foi convidado para integrar o corpo de assessoria da CONTAG, tendo exercido a função de assessor nacional entre 01/01/1971 e 15/09/1971. Em meados de 1978, estava lotado na OCEPE, exercendo o cargo de assistente, contratado pela OCB com os recursos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), conforme convênio. Nesse período, sofreu com a repressão do período militar, haja vista a sua luta pelos trabalhadores, sendo perseguido, injustiçado e cassado.
Além de ser um dos fundadores da OCB/PE, trabalhou por mais de 20 anos como Secretário Executivo na entidade, cargo equivalente ao de superintendente, e construiu as bases do cooperativismo pernambucano junto a outras lideranças. Nos últimos anos de atuação, ele se dedicou ao magistério, atuando como professor, sobretudo, na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e na organização e formação de jovens e adultos do mundo rural, criando a entidade chamada SERTA. Nesse processo, contou sempre com o apoio da igreja católica, prestando grandes trabalhos na Diocese de Olinda e Recife.>>.
A consciência que Paulo Crespo tinha da sua missão como presbítero o fez, todo o tempo de sua existência terrena, um evangelizador e educador social popular, para quem Fé e Política eram as duas faces de um mesmo compromisso. E ele fica para nós como referência significativa, nesses tempos de crise. Fazendo-lhe essa homenagem, nos albores do nosso Grupo de Fé e Política do Recife, e recordando tantos outros e outras que, aqui mesmo em nosso Recife, nos deixaram um legado semelhante de história e testemunho, parece-me fazer sentido o que se lê no início do cap. 12 da Carta aos Hebreus:
“Portanto, com tamanha nuvem de testemunhas em torno de nós, deixemos de lado tudo que nos atrapalha e o pecado que nos envolve. Corramos com perseverança na competição que nos é proposta, com os olhos fixos em Jesus, que vai à frente de nossa fé e a leva à perfeição. Em vista da alegria que o esperava, suportou a cruz, não se importando com a infâmia, e assentou-se à direita do trono de Deus. Pensai pois naquele que enfrentou uma tal oposição por parte dos pecadores, para que não vos deixeis abater pelo desânimo” (vv. 1-3).
Reginaldo Veloso, presbítero das CEBs, no Morro da Conceição e Adjacências – Assistente Adjunto Regional do Movimento de Trabalhadores Cristãos (MTC)IMG_0673

Carta aberta aos companheiros

Recife, 14 de março 2016monge-marcelo-barros-mst1-600x520
Caros companheiros de caminhada e de esperança,
Hoje, nós que formamos junto com os movimentos sociais e as comunidades humanas (não somente cristãs ou eclesiais) de base, amanhecemos com um gosto amargo na boca e, ao mesmo tempo, com alguns elementos que nos dão esperança.
Parece que a análise de vários companheiros e mesmo a da mídia elitista e reacionária (como Folha de São Paulo) concorda que as manifestações desse domingo mostraram mais a reação da elite branca e de classe média do que uma manifestação de todo o povo brasileiro. Isso não diminui a gravidade da situação. embora não tenha ido às ruas com a elite gritar pelo impeachement e pelo quanto pior melhor. Embora não tenha ido às ruas com a elite gritar peloimpeachement e pelo quanto pior melhor, o povo pobre e das periferias, influenciado pelos grandes meios de comunicação, construtores do golpe que se aproveitam da crise econômica atual, está descontente e insatisfeito com a situação e com o governo.
Reconhecendo as fragilidades e erros de muitos companheiros, sabemos que a presidente e Lula não estão diretamente envolvidos em corrupção. No entanto, há sim um sistema de corrupção que parece generalizado no país. Constatamos que essa aliança de partidos e conluios,  feitos com qualquer pessoa para manter poder e prestígio, desfiguram profundamente a dignidade das pessoas e em questão, mas mesmo a dignidade da ação política.
Será que, agora, a Dilma e o Lula serão favoráveis e se colocarão verdadeiramente a favor de uma profunda Reforma Política, coisa que antes, tanto um quanto o outro, não conseguiram encaminhar?
Certamente, um elemento sério da conjuntura atual é a dificuldade da esquerda em lidar com uma situação de pré-golpe, claramente articulado por poderes do Império, os mesmos que atuam na Bolívia, Venezuela, Argentina e em todo o continente.
Por mais grave que seja, toda crise é mais do que apenas uma situação de dificuldades e problemas. Pode ser também ocasião de mudanças e de renovação. O que poderíamos fazer para que essa atual crise social e política brasileira pudesse gerar um movimento de renovação e de vida nova para o país e o povo?
É importante reconhecer que Lula tirou milhões de brasileiros da miséria. Mas, como o governo não investiu suficientemente em mecanismos de educação popular e política, formou mais consumidores do que cidadãos.
E agora, em termos de massa, não contamos com essa mesma categoria de pobres ajudados pelo governo. Eles não têm como perceber que, por trás de toda essa luta política, está um projeto de país que deveria ser deles e ao qual o governo precisaria ser fiel. Além disso, como o governo não investiu na comunicação, não existe no país uma rede de rádio e televisão eficiente e competitiva que explique ao povo o que de fato está acontecendo. Nem o governo Lula, nem a presidente Dilma se esforçaram para democratizar os meios de comunicação, não puseram em prática as decisões das conferências sobre Comunicação que ministros do próprio governo assinaram. Foram mais fieis à Globo e às outras emissoras que hoje os condenam e os destroem.
Lembro-me que em 1962, quando a situação brasileira começava a caminhar na direção do golpe de 64, um grupo da CNBB, sob a inspiração de Dom Helder, criou o MEB – Movimento de Educação de Base – e esse movimento de profissionais e voluntários, através do rádio que era o instrumento que havia na época em todo o Brasil, produziu programas, cursos de alfabetização de adultos e fez o que pode no sentido da educação social e política. Será que conseguiríamos correr contra o tempo e fazer cartilhas, produzir programas de rádio e criar um grande mutirão de conscientização e alfabetização política – criar uma espécie de cruzada de conscientização em todos os níveis possíveis? Sem dúvida, tais medidas na linha da educação popular não serão mais úteis para deter o processo que estamos vivendo nesses dias no plano do governo. No entanto, por mais que o governo seja importante, não é a única bandeira de luta e nem a última. Conseguir construir a partir das bases um projeto para o país e colocá-lo em realização mesmo ainda de forma artesanal, a partir das bases, seria um projeto para um prazo mais longo.
É possível que as tensões aumentem. Aos cristãos, as multidões que estão indo às ruas para pedir impeachement de Dilma, linchamento político de Lula e destruição do PT, podem lembrar que nem . Nessa Semana Santa, celebramos a memória de Jesus, o profeta que viu contra si uma multidão de gente do povo, insuflada pela maquinação dos poderosos da religião e da política gritar: Crucifica-o!
Esperamos que, hoje, no Brasil, essa onda de ódio coletivo e de intolerância não gere nenhuma morte. Nós, cristãos, cremos, como expressou Reginaldo Veloso em um email enviado nesses dias: “que Jesus  ressuscitou para continuar animando a fé dos que creem no Projeto dos Empobrecidos e Excluídos e com ele se comprometem até o fim”.
Para todos vocês, uma santa e fecunda celebração dessa Semana Santa e principalmente de uma Páscoa renovadora.
O irmão Marcelo Barros